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domingo, 26 de abril de 2015

Ouvir música e ouvir a voz do dono


O que faz o cão desta famosa imagem diante do gramofone? Ouve música? Certamente que não, a não ser que seja um cão muito especial.

Do que se sabe, os cães não têm a capacidade de ouvir música. Sem dúvida que ouvem o som da música (os que não forem surdos, claro), mas são incapazes de ouvir a música do som. Isto é assim porque a música é mais do que apenas som, tal como a Ode Marítima ou uma conversa sobre lógica matemática entre dois polacos é mais do que apenas som. Um português que não saiba polaco não encontrará nesta conversa mais do que uma sequência de sons ininteligíveis do mesmo modo que os sons que saem daquele gramofone parecerão ao cão apenas som. Com a agravante de que, provavelmente, o cão nem sequer faz distinção alguma entre o que parece e o que é. Para o cão, o que parece é tudo.

O que falta, então, ao cão para ser capaz de ouvir música? Falta-lhe ter um mínimo que seja de compreensão do que ouve, de modo a encontrar algum sentido nos sons que lhe chegam aos ouvidos. O som está por toda a parte, mas só uma parte dele é música: aquela parte que é organizada e obedece a uma dada estrutura, com o intenção de produzir um certo efeito. As peças musicais, mesmo as mais simples e banais, são objectos intencionais complexos, com uma sintaxe e com um conteúdo que envolve aspectos culturais totalmente estranhos aos cães.

Ouvir música requer, portanto, algum grau de compreensão do que se ouve. Esta compreensão não tem de ser o resultado de um processo intelectual que se acrescenta à audição; é antes aquilo que se poderia designar como compreensão auditiva, isto é, uma audição significante que faz da música mais do que uma mera sucessão de sons. Talvez porque muitas pessoas não têm um mínimo de compreensão auditiva quando ouvem, por exemplo, música dodecafónica, elas acabem por concluir que aquilo não passa de um amontoado de ruídos, sem qualquer sentido ou estrutura discerníveis. Contudo, o pai da música dodecafónica, Schoenberg, deixou bem claro que «sem organização, a música seria uma massa amorfa, tão ininteligível como um ensaio sem pontuação, ou tão desconexo como uma conversa que salta sem propósito algum de uma assunto para outro».

Pense-se o que se pensar da música dodecafónica, a ideia de que ouvir música envolve sempre algum tipo de compreensão do que se ouve parece consensual entre filósofos e musicólogos. As divergências começam quando se procura descrever e caracterizar o tipo de compreensão musical fundamental.

Por um lado, há quem pense que o tipo fundamental de compreensão se dá por meio da apreensão da estrutura subjacente que se desenvolve no tempo, e de acordo com a qual as diferentes partes da composição musical se ligam e hierarquizam. A ser assim, a compreensão musical exigiria do ouvinte algum tipo de aptidão técnica e de capacidade analítica que lhe permitam detectar os aspectos estruturais da música. Isso impõe, por sua vez, algum distanciamento reflexivo durante o próprio acto de escuta e uma capacidade de apreender cada momento da experiência auditiva como parte de uma totalidade mais vasta e coerente. Neste caso, ouvir com compreensão não é algo que esteja acessível a qualquer um, pois as ferramentas analíticas só estão disponíveis para quem tenha alguns conhecimentos técnicos. O método de análise musical que corresponde a esta perspectiva é o da chamada análise schenkeriana (proposta por Heinrich Schenker) e que entretanto se tornou moeda corrente entre musicólogos. O modelo schenkeriano dirige a atenção para a relação de cada uma das partes com o todo, sem o qual elas não fariam sentido. Isso envolve processos mentais e cognitivos complexos da parte do ouvinte, em que este tem de ter a noção da forma musical em escuta, numa abordagem que é marcadamente intelectual e que pode ser essencialmente descrita de modo proposicional. 

Mas esta perspectiva veio a ser desafiada pelo inevitável Jerrold Levinson. Este filósofo veio, no seu muito discutido livro Music in the Moment (1997), em defesa do ouvinte comum — aquele que não tem qualquer formação teórica e musical —, argumentando que a compreensão musical fundamental, quer se trate de uma sinfonia clássica, de uma peça de jazz ou de música popular, não exige qualquer dessas capacidades analíticas nem depende da apreensão cognitiva da arquitectura subjacente às peças musicais como um todo. De acordo com Levinson, a compreensão musical fundamental não é essencialmente analítica, nem intelectual, nem tampouco estrutural ou holística. Levinson considera que a compreensão musical básica se dá na própria experiência particular da escuta, momento a momento: tudo o que se requer é a percepção de que cada momento presente está ligado de forma coerente com os momentos imediatamente anteriores e seguintes, sem qualquer consideração de carácter estrutural de longo alcance. Assim, a compreensão vai-se dando por meio de um processo de concatenação de momentos, em que o fundamental não é tanto o que se ouve mas antes como se ouve. O importante é, pois, a apreensão do modo como cada um dos momentos se liga aos outros. 

Levinson nunca diz que a análise dos aspectos estruturais não pode contribuir para uma mais profunda compreensão musical e muito menos que tal análise não tem qualquer vantagem. O que diz é que a compreensão musical fundamental não exige tal coisa. E nem sequer deixa de reconhecer que os aspectos acerca da arquitectura musical são frequentemente da maior importância para o compositor. Contudo, compor uma peça musical e ouvir com compreensão essa peça são coisas distintas. Afinal de contas, apreciar uma dada peça musical é, acima de tudo, uma experiência de escuta e não um acto de reflexão musical.

Se o objectivo das pessoas ao ouvir música for descobrir o que ia na mente do seu autor, então tentar descobrir as ideias que nortearam a sua composição talvez seja fundamental para ouvir a voz do dono. Felizmente, a música não deixa de poder ser adequadamente apreciada mesmo quando não estamos especialmente interessados na voz do dono.  

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